segunda-feira, 23 de julho de 2018

Nova Chance - Romance - Capítulo 10


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Não, tempo, não zombarás de minhas mudanças!
As pirâmides que novamente construíste
Não me parecem novas, nem estranhas;
Apenas as mesmas com novas vestimentas.
(William Shakespeare)

 10
            Enquanto o inspetor Clayton discursava seu plano “mirabolante” para achar a desaparecida Camily, Alisson havia sido recebido pelo Padre Abel para a tão aguardada conversa. O papo aconteceu na casa paroquial que ficava nos fundos da igreja. Ambos sentaram nos dois pequenos sofás da saleta. Um de frente para o outro. A casa paroquial realmente era muito pequena, pois servia apenas para um sacerdote. Não tinha conforto, porém não era uma cela de Mosteiro.
            Padre Abel iniciou a conversa deixando Alisson bem à vontade. Falou um pouco sobre a pequenina casa paroquial e logo perguntou:
            _Então meu jovem. Em que posso ajudá-lo?
            _Padre, quando estive recentemente na casa de minha mãe, ela disse que o senhor proferiu um belo sermão sobre o Tempo na Vida da Gente. Eu gostaria de conversar um pouco sobre esse assunto. Tenho vivido experiências ultimamente com o tempo que nunca imaginei que seria possível. Quero começar com uma pergunta, posso?
            _Mas é claro, meu jovem. – falou um curioso e atencioso padre.
            Padre Abel deveria ter uns cinquenta anos; era vivido em questões de aconselhamento, pois já tinha uns vinte e cinco anos de vida sacerdotal. Sua voz encorpada e seu rosto sereno com certos fios de cabelos brancos rajando sua cabeça faziam o povo reconhecer madureza e sabedoria. O azul bebê de sua camisa clerical tranquilizava ainda mais Alisson. 
            _Tá bom! Vamos lá! Padre, podemos voltar no tempo?
            _Creio que não, Alisson. A não ser na nossa memória, na nossa mente ou então no inconsciente, enquanto sonhamos. O nosso tempo é o “Cronos”, daí as palavras cronologia, cronômetro. O “cronos” é o tempo que ocorre progressivamente para frente, avançando em milésimos de segundos, segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, séculos, milênios, etc. O nosso tempo é para o futuro, embora tenhamos vivido o passado e vivamos o presente.
            _Padre, é como disse o cantor Cazuza: “O tempo não para”? – perguntou sorrindo Alisson.
            _Bem lembrado! Porém, vale ressaltar que Deus não está preso ao nosso tempo. Ele não conhece a divisão: passado, presente e futuro. Para Deus, há somente um Presente Eterno, o “kairós”. É por isso que Ele disse a Moisés no Monte Sinai: “Eu sou o que Sou” (Êxodo 3:14), e não “Eu Fui” ou “Eu Serei”. Deus não vê o tempo correr, mas sim acontecer.
            _Então padre, – Alisson ajeita-se no assento e arremata com outra pergunta – para Deus tudo o que passou, o que está acontecendo e o que vai acontecer está diante de seus olhos?
            _Sim! Isto não é maravilhoso!?
            _Com certeza! É fascinante! Agora, o texto de Eclesiastes capítulo três, que o senhor pregou dias atrás, fala que há um tempo determinado para cada coisa.
            _Isto mesmo! Só que dentro da perspectiva humana. Na visão divina, cada momento é tempo de tudo acontecer. Como o nosso tempo é organizado cronologicamente, as coisas têm um tempo determinado para acontecer. É impossível você nascer e morrer ao mesmo tempo, a não ser que seja em termos simbólicos ou espirituais. Dizemos que quando uma pessoa se entrega à religião ela, ao mesmo tempo, morreu para o “mundo” (sistema de valores e princípios contrários aos da religião) e renasceu para uma nova filosofia de vida. Isto é possível no mundo espiritual e sobrenatural, e, consequentemente, simbólico, pois dizemos que ela passou de uma espécie de morte (letargia espiritual) para uma espécie de vida (novas ideias, emoções e novo proceder). Fora isso, cada fato tem o seu tempo determinado.
            _Tudo bem, Padre. E as crianças que nascem mortas?
            _Veja bem: elas nasceram mortas, isto é, morreram e depois nasceram – respondeu Padre Abel.
            _Mas eu posso sorrir e chorar ao mesmo tempo, Padre.
            _A não ser que seja por alegria, porque por tristeza não dá. É por isso que o livro de Eclesiastes vai dizer: “se é tempo de chorar, chore; se é de sorrir, sorria; se é tempo de lutar, lute”. Confundir as emoções pode ser sinal de doença mental ou perturbação psiquiátrica.
            _Reverendo – Alisson insiste nas indagações –, eu posso estar em meio a uma guerra e ter paz? Já que Salomão diz que há “tempo de guerra e tempo de paz”? 
            _Olhe só! Salomão nesse texto está trabalhando a categoria tempo como um período de vida. Ele não está pensando em situações internas e psicológicas. O que você está dizendo é possível quando pensamos no “tempo psicológico”. Psicologicamente ou mentalmente falando, nós podemos, como já falei no início da nossa conversa, ir tanto para o passado quanto para o futuro, recordando ou projetando o que esperamos vivenciar. É por isso que sofremos ou nos empolgamos e nos alegramos com o que já vivenciamos e com o que ainda vivenciaremos. Logo, é possível viver a paz, em meio à guerra, aqui dentro (apontou para o peito), no coração.
            Alisson, cada tempo é importante e precisa ser vivido com intensidade. Quando eu era pequeno “lá em Barbacena” (rsrsrs), digo lá em São Joaquim, Mato Grosso, minha mãe acordava eu e o meus irmãos lá pelas cinco e meia da manhã para nos aprontar para o Colégio. Como nós éramos pobres de fazer inveja aos miseráveis, não tínhamos relógio. Nossa mãe controlava a hora ouvindo a Rádio Relógio. E, se eu lembro muito bem, de minuto em minuto, o locutor anunciava a hora e, às vezes, várias vezes, ele ou ela dizia: “cada minuto que passa é um milagre que não se repete”.
            E é verdade. Viver é um milagre. Cada minuto é um milagre independentemente de como ele acontece. E detalhe: não se repete. O ontem não é igual ao hoje e este não será igual ao amanhã. Cada minuto deve ser valorizado; não apenas o minuto que passou ou que se está vivenciando, mas também valorizar o minuto que ainda não passou ou que ainda não chegou, pois este é um milagre que ainda vai chegar. Teologicamente, o minuto, o instante, é um tempo, que é um milagre, sendo um momento de viver milagres e de proporcionar aos outros: milagres.
            _Extraordinário Padre! – deu um salto do assento, exclamando, um entusiasmado Alisson.
            _Vamos fazer uma pausa para um café? Eu gosto muito de um café fresquinho, que tal? – propôs Padre Abel.
            _Aceito. Também gosto muito de um café.
            _Bem forte Alisson?
            _Bem forte padre.
            Ambos foram para a cozinha da casa paroquial, que era igualmente minúscula. Padre Abel “passou” o café rapidamente, mas ainda deu tempo para uma curta prosa sobre culinária.    

(Gilmar Cabral)

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Nova chance - Capítulo 9

Tem horas que é caco de vidro
Meses que é feito um grito
Tem horas que eu nem duvido
Tem dias que eu acredito.
(Paulo Leminski)

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9
            Segunda-feira 8:30 da manhã. Alisson dirigiu-se rumo à casa paroquial de Padre Abel. Nem parecia que tinha encerrado um relacionamento amoroso de forma dolorosa na noite anterior. Estava confiante, pois as respostas já começavam a chegar. Ele tinha certeza que Padre Abel traria luz ao seu entendimento sobre o que estava acontecendo com ele.
            Lembrou-se de ligar para a turma do escritório de Markting. Falou com o pessoal e garantiu que à tarde estaria lá e que eles “quebrassem” mais essa pra ele. Ouviu um chororô, mas disse que era fundamental essa conversa. Depois ligou para Elizabeth e soube que o inspetor Clayton havia acabado de ligar para ela, aproveitando o número do telefone da Empresa que ele havia apanhado quando lá esteve fazendo os “interrogatórios” sobre o sumiço de Camily. No telefonema, ele disse algo importante: estava organizando naquela manhã uma invasão ao Morro do Carpão para tentar encontrar o esconderijo em que Camily poderia estar. Ele afirmara que estava convencido de que a moça ainda se encontrava viva lá no Morro, embora praticamente toda a Delegacia em que trabalhava achava que era mais uma de suas suposições estapafúrdias. Mas ele sabia que deveria agir logo, antes que fosse tarde demais. Com muita lábia, conseguira convencer o delegado a fazer essa operação e ainda conseguiu o apoio da Polícia Militar para a invasão. Na verdade, a Polícia já estava planejando esse tipo de ação para inibir o tráfico na região e o agente Clayton tirou proveito disto.  
            Alisson agradeceu a informação e disse que estaria à tarde lá na Empresa e que, assim, eles poderiam acompanhar as informações sobre a operação policial, juntos. Falou que estaria com o Padre pela manhã e que solicitaria ao próprio que rezasse junto com ele por Camily. Desligou.
            O inspetor de polícia Clayton Gomes era um pai exemplar e excelente marido. No trabalho, já era meio bola fora. Quase sempre não resolvia os casos e acabava por complicar tudo com teorias mirabolantes sobre o desfecho dos crimes. Além dessa trapalhada toda, ao ficar nervoso ou ansioso, cuspia feito doido. Sua boca salivava com uma enorme abundância. Já tinha ido a médicos de várias especialidades. Já havia procurado realizar todos os exames imagináveis e nada de descobrir a real causa. Assim, o neurologista atestou: sofre de cusparada obsessiva. Não tem cura. Mas é possível controlar com ansiolíticos. Só que, ao ler na bula do remédio Alprazolam 0,5mm, que o mesmo traria um benefício: relaxar; e “trocentos” efeitos colaterais: de vômito passando por diarreia até convulsão, seu Clayton não tomou nenhum comprimido. Trocou o medicamento por Maracujina.
            Teve uma vez que ele assumira um caso de sequestro parecido com o da Camily. Só que o desfecho havia sido um fiasco. Um garoto fora sequestrado na porta de casa enquanto brincava com os coleguinhas. Ele morava numa boa casa no Grajaú. Era filho de uma microempresária e de um advogado bastante respeitado. Tudo indicava que a principal suspeita do crime era uma ex-empregada doméstica da família que havia jurado vingança ao ser demitida por justa causa já que fora apanhada em flagrante pela patroa roubando dois brincos de ouro da dona. Mas seu Clayton cismou que a sobrinha do casal era a principal suspeita: uma garota de quinze anos que estava passando férias na casa dos tios. Moral da história: a polícia demorou a agir, confundindo-se com a suspeita errada e o menino foi morto pelos sequestradores. O inspetor Clayton quando conseguiu prender a quadrilha e constatar que fora a ex-empregada a mentora do crime, já era tarde. Ele até ficou depressivo por cinco meses, tendo às vezes de ficar de licença médica tamanha era a “depre” em que ele se encontrava.
            Assim, a fama desse inspetor foi se alastrando não apenas por sua Delegacia, mas também isso acabou vazando para outras Delegacias. Quando já pensava em largar a carreira policial, sua esposa e seus dois filhos o incentivaram dizendo que acreditavam nele e na sua capacidade. Decidiu tentar de novo e, após dez casos praticamente perdidos, finalmente seu Clayton esclareceu um crime: o roubo de uma lata de goiabada do Armazém ou falando chique da Loja de Conveniência Pegue e Pague. Mesmo assim, o inspetor Clayton demorou uma semana para desvendar o crime, enquanto que a gerente da Loja ou do Armazém, sei lá, já sabia desde o primeiro dia do roubo quem havia cometido o delito: um adolescente cheirador de cola que vivia pelas imediações da Loja manjando a oportunidade. Porém, seu Clayton achou óbvia demais essa constatação até que seis dias depois do ocorrido resolveu pressionar o rapaz que circulava de novo por lá por certo esperando outra moleza para roubar. O garoto confessou após quase meia hora de tortura psicológica sobre o que aconteceria com ele se fosse para o juizado de menores.
            Esta resolução “fantástica” do crime da lata de goiabada ajudou a amenizar a má fama de Clayton. Agora tinha novamente a sua grande oportunidade de subir no conceito de seus colegas de trabalho, mas também no conceito de seus amigos e familiares. Era somente resolver o “Caso Camily”. Ainda que com remotas chances de encontrá-la com vida, o mais importante era dar um desfecho para o caso. Esse crime era visto por ele como uma espécie de resgate, de redenção de seu nome e de seu prestígio como policial. Uma nova chance para definitivamente começar sua carreira de sucesso profissional.
            Clayton chamou todos os policiais e agentes envolvidos na operação de invasão ao Morro do Carpão e fez uma explanação de quarenta minutos sobre como seria a operação. No final da fala dele, já tinha policial roncando sentado na cadeira. Outros fingiram que o ouviram, mas não davam muita bola pra ele; certamente pela sua fama de trapalhão, o que ganhava corpo com as paradas de cinco em cinco minutos para cuspir. Encerrou e preparou os policiais para invadir.
            O delegado dizia consigo mesmo: “tomara que este paspalhão saiba o que está fazendo. Só deixei porque a Polícia Militar ia lá mesmo e, além do mais, precisamos dar uma resposta mais efetiva a esse crime senão daqui a pouco o caso vaza para a imprensa e estamos ferrados”. O “delega” ficou tão preocupado com essa operação que passou a manhã toda com diarreia, comendo torrada com suco de caju gelado para ver se refreava o negócio. Que furada hein!?


(Gilmar :Cabral) 



























segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Romance - Nova Chance - Capítulo 8

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O tempo passa e um pouco de tudo aquilo que nós chamávamos de falsidade se transforma em verdade...
(Marcel Proust)

            A manhã de domingo surgiu nublada. Mais parecia a mente de Alisson após tantos acontecimentos e tantas perguntas sem respostas. Tomou o café tradicional após o banho também tradicional e partiu para a igreja no Méier. Chegou lá bem na horinha: às 8 horas; horário da primeira missa. Logo viu sua mãe na terceira fileira de bancos como se acostumou a sentar todas as manhãs de domingo. Chegou de mansinho e a surpreendeu. Ela ficou numa alegria só. Porém, não puderam conversar muito, pois o Padre Abel já se encontrava todo paramentado para a homilia.
            Naquela manhã o reverendo falou sobre o Tema: “Oportunidades”. Trouxe à memória de todos a passagem em que um cego chamado Bartimeu, ao saber que Jesus passaria por Jericó, não perdeu a oportunidade e clamou para ser curado. Ao que o Mestre o atendeu, curando-o. O Padre Abel reforçou que aquela era realmente a última oportunidade para Bartimeu já que, dias depois, Jesus seria julgado, condenado e morto. Se o cego tivesse perdido aquela chance, ficaria sem a visão até o fim de seus dias. Da mesma forma, enfatizava o Padre:
_Todas as pessoas precisam estar atentas a não perderem as oportunidades de fazerem e de receberem o bem. Jesus não perdeu a chance de fazer um grande benefício aquele cego e este não desperdiçou a chance de ser curado.
O Padre ensinou que quando fazemos o bem, por amor, sempre aproveitaremos da melhor forma as oportunidades que aparecerem em nossa vida. E assim falou por quarenta e cinco minutos, mas com tanta habilidade e carisma, que o povo nem sentiu o tempo passar.
            Acabando a missa, Alisson pediu que sua mãe aguardasse um pouco que logo ele a levaria para casa. Aproximou-se de Padre Abel, se apresentou e pediu se poderia conversar um pouco com ele sobre algumas questões que o estavam incomodando muito: questões existenciais. O Padre Abel falou que sim, seria um prazer e que poderiam conversar na segunda-feira pela manhã, pois ele estava com este horário livre. Alisson disse que teria trabalho nesse horário, mas que daria um jeito de estar ali para essa conversa acontecer. Afinal, o mais interessado em expor seus pensamentos e sentimentos era ele mesmo. Nessa altura, já imaginava pedir aos seus colegas de trabalho para suprirem sua ausência na segunda de manhã. Despediram-se marcando o encontro para ali mesmo na igreja, mais precisamente na sala da casa paroquial.
            Alisson ficou muito agradecido por esta oportunidade e saiu com a mãe levando-a para casa. Lá, almoçou com ela, com o pai e com o irmão mais novo, passando a tarde também na companhia deles. Foram muito agradáveis aqueles momentos em família. Aproveitaram para juntos relembrarem grandes momentos da infância e da adolescência dos “meninos”. Alisson “zuou” seu irmão Arthur quando soube que ele estava namorando a Cintia Vozerão, uma vizinha que desde criança era “encarnada” porque falava “grosso”, parecia um menino falando. Arthur aceitou a gozação, mas disse que estava apaixonado e que ela havia se tornado uma bela moça, ao passo que, embora também bonita, Alexia se transformara nos últimos meses em “uma mala sem alça”, dizia rindo da cara de Alisson. E o pior que era verdade, tanto uma coisa quanto a outra.

            Com a barriga ainda cheia da deliciosa comida da mãe e da não menos saborosa torta de morango, Alisson chegou até a sua casa, presenciando em seu portão a bela Alexia, que o estava esperando já havia algum tempo.
            _Que surpresa, Alexia! Está me esperando por muito tempo?
            _Não, cheguei tem pouco tempo. Na verdade, já ia embora por achar que você não fosse retornar tão cedo. Não sabia e não sei aonde você foi...
            _Certo... bem... fui até a casa de meus pais, na realidade, fui primeiro à missa e depois fui almoçar e passar a tarde com meus pais e meu irmão.
            _E como é que eles estão? Tem um tempo que não os vejo. Às vezes, sinto falta de nossas saídas até a casa de seus pais.
            _ Eles estão bem e, quanto a não ir mais lá, foi você mesma que pediu para não irmos mais já que você cismou que meu irmão Arthur nunca gostou de você!
            _É verdade. Já havia me esquecido disso.
            _Vamos entrar para conversarmos melhor lá dentro, Alexia?
            _Claro!
            Ambos entraram e Alexia ficou em pé na sala sem sentar-se. Alisson achou aquela atitude estranha e perguntou o que estava havendo e disse que ela poderia se sentar no sofá. Alexia, desconfortavelmente, sentou-se. Alisson também se sentou no sofá em frente ao que Alexia sentara e ambos ficaram um olhando para o outro num jogo de olhares e num silêncio angustiante e sepulcral. Até que Alisson quebrou o silêncio perguntando:
            _E aí? Por que você veio?
             _Creio que precisamos conversar, pois dá última vez nós não nos entendemos bem, não é mesmo?
            _É. Você ficou com ciúmes de uma colega minha de trabalho que ainda está desaparecida...
            _Tem razão. Eu exagerei, mas também você trocou meu nome pelo dela...
            _É... A situação da moça me abalou. Foi sequestrada por marginais.
            _Nossa! Que horrível! – disse Alexia com cara de aflita.
            _Pois é. Entretanto... Vamos falar sobre nós...
            _Está bem Alisson. Por incrível que pareça, eu não senti a sua falta nesses dias. Pela primeira vez, desde que nós começamos a namorar, eu fiquei bem sem a sua presença. E isto me fez pensar muito se vale apena ou não continuarmos com esta relação. Você só conhece um pouco sobre mim. Desde pequena tenho problemas com a figura masculina – Alisson começou a ficar preocupado com essa afirmação e o desdobramento da conversa – tudo começou com o meu pai. Você conhece o meu padrasto, todavia meu pai foi um homem, digo que ele foi porque já faleceu de enfarto, muito rude. Batia na minha mãe, a humilhava, o que fez com que eu não me espantasse dela, com um mês da morte de meu pai, ter se ajuntado com o meu padrasto, que era um vizinho muito próximo. Já entendeu que todo mundo pensou na traição né? Eu também.
            A relação com o meu padrasto sempre foi horrível. Não nos falamos, ou melhor, somente o necessário. É assim desde que ele entrou na minha vida de adolescente. Sabe que às vezes eu achava que a implicância comigo e com os meus namorados era somente porque eu não aprovava a relação dos dois, embora tenha que reconhecer que ele tratava e trata muito bem dela. Acredito que gosta mesmo dela e isto é suficiente para mim, porém nunca conseguimos nos entender. No entanto, ultimamente venho revendo isto e acho que ele tem uma espécie de ciúme de mim. Não sei se motivado por um sentimento paternalista machista ou se por um desejo reprimido e escuso.
             Só sei que esta dúvida e o medo de confirmar tal sacrilégio me fizeram me afastar ainda mais dele e dela. Entro no meu quarto e somente saio para fazer as alimentações, fazer a higiene, as necessidades biológicas e ir para a Faculdade ou para algum outro lugar.
             Não tenho irmãos ou irmãs. Sempre fiz de minhas amigas e primas minhas irmãs. Não foi possível fazer o mesmo com meus primos e colegas meninos de escola e de rua. Eles eram muito maliciosos e abusados. Não me davam chance de confiar neles. Os namorados só queriam transar. Você foi o primeiro que me deu esperanças de ter uma relação confiável e estável. E, pelo jeito, eu não valorizei isto. Sei que fui muito possessiva e até mesmo chata; sempre cobrando de você. Entretanto, não posso deixar de dizer que você também me decepcionou ao não me ouvir muitas vezes. Sempre necessitei muito de conversar...
            _Mas por que você não me alertou Alexia?
            _Essas coisas a gente não alerta. A gente imagina que o cara vai notar, e você nunca notou que eu sempre fui carente da figura paterna;  você poderia tentar substituir meu pai. Isto já me ajudaria. Sem os seus ouvidos e tentando me entender, entrei para o Curso de Psicologia, mais querendo me resolver do que trabalhar com isso profissionalmente. E nesse particular, tenho que dizer que você nunca me apoiou; muito pelo contrário, sempre reclamava que eu estava “estagiando em nosso relacionamento...”
            _Também pudera, Alexia, qualquer situação que acontecia com a gente você vinha com teorias de Freud, Lacan, Erick Ericsson, etc.. “Faça-me um favor....”
            _Não! Eu somente tentava entender o que acontecera com base nos meus conhecimentos aprendidos na Faculdade... Deixa pra lá!
            De tanto não contar com a sua colaboração em me ouvir, comecei a conversar mais repetidamente com um grupo nosso de trabalho na Faculdade. Nós nos reuníamos e fazíamos uma espécie de terapia de grupo. E começamos a descobrir que tínhamos mais coisas em comum do que diferenças. Nesse grupo, eu conheci mais de perto um colega de turma chamado Renato. Não deu muito tempo e nós (Alisson já começava a respirar fundo, pois previa a confissão de Alexia em breve, muito breve...) começamos a sair juntos por nos identificarmos com as mesmas queixas, isto é, eu me queixando de sua ausência, embora presente fisicamente, e ele da mesma forma com relação à Rosane, sua namorada. (Alexia fica de pé e passa a andar para lá e para cá). Conversa vai e conversa vem. Beijamo-nos e passamos a nos encontrar após as aulas. Estou apaixonada. É isso! Pronto: falei! Desculpe-me, Alisson, pela traição.
             _Como é que é? Você me trai e vem com essa cara mais deslavada dizer isso?
            _Alisson, você gostaria que eu ficasse traindo você às escondidas?
            _Não! Preferiria que você não tivesse me traído! Por que você não me procurou assim que começou a sentir atração pelo rapaz? Esperou beijá-lo e transar para depois vir aqui com essa “cara de besta” falar isso para mim?
            _Pera lá, não me ofenda! E eu não transei com ele, pelo menos ainda não. Quase, mas eu segurei as pontas, como fiz com você no início até saber verdadeiramente com quem estava me relacionando.
            _Não Alexia! Você não sabe e nem nunca soube com quem estava, ouviu, estava se relacionando. Já chega! Pode ir! Vá viver sua nova e louca paixão! Podem ir pro divã juntos. Vocês se merecem!
            _Eu não queria que acabasse assim. Você foi muito importante na minha vida...
            _Não parece! O que parece é que você encontrou um “pai”, o qual você pode namorar.
            _Não fale assim! Sou agradecida por tudo que passamos juntos. – Alexia falou chorando muito.
            _Quer dizer que você me agradece me colocando um chifre? – disse ironicamente Alisson.
            _Bem... já disse o que desejava e tinha obrigação, dever de dizer. Tchau! É triste acabar assim – argumentou uma decepcionada Alexia.
            _Tchau! Seja feliz!
            Alisson abriu a porta para Alexia sair. Ela indo para a porta, subitamente, lançou-se nos braços dele e o beijou no rosto, ao que Alisson a empurrou e disse:
            _Adeus!
            Quando ela saiu, ele bateu a porta com força e foi tomar banho, extremamente aborrecido. No chuveiro, como sempre fazia, abriu o registro e deixou a água escorrer pelo seu corpo, novamente num ritual de purificação. Jamais pensava que seria traído por uma mulher. Sempre desconfiou que ele próprio se tornasse um traidor incorrigível, de tanto que olhava a mulher dos outros quando era adolescente; bastava ter um acompanhante ou alguém do lado para chamar a atenção de Alisson. Às vezes, as meninas, as garotas e as mulheres mais bonitas estavam sozinhas nas festas, mas ele se interessava pelas comprometidas. Não sabia explicar ao certo o porquê dessa atração pelas comprometidas; queria constantemente roubar a namorada dos outros. Uma possível explicação seria o fato de se interessar por aquela que fora alvo da cobiça de alguém, de algum concorrente. Era uma espécie de competição e obsessão: ter o que não se podia mais ter. Tomar algo que fazia o outro se sentir bem. Descobrir por que aquela moça foi cortejada, o que ela tinha de interessante.
            Talvez tenha sido vítima desse próprio veneno. Recebeu na pele a própria vingança por tantos colegas que fez sofrer ao roubar a namorada deles. Talvez esse tal de Renato tenha sido algum deles e agora se vingou. Ou não, realmente tenha se apaixonado e vai fazer Alexia feliz. Para isso ele vai ter que deixar outra sofrendo: a Rosane, sua namorada e tão “corna” quanto ele se sentia “corno”. 
            Alisson sofria mais pelo orgulho masculino ferido do que por gostar ainda de Alexia. E isto era uma espécie de consolo. Já estava praticamente apaixonando por Camily. Porém, o aterrorizava a enorme possibilidade dela estar morta. “Já pensou?” – pensou ele –  “estar apaixonado por uma defunta?”
            Saiu do banho e foi se deitar. Eram oito horas da noite e ele estava exausto por tantas emoções vividas. Nem quis comer nada, perdera a fome com a confissão de Alexia e ainda sentia a barriga cheinha de torta de morango. De certa forma, aquietou-se com o trabalho poupado de ter que terminar com Alexia. Já deitado, Alisson lembrou que o término do namoro havia acontecido em setembro de dois mil e onze. Então uma de suas perguntas, a que indagava sobre a possibilidade de alterar os acontecimentos, estava respondida: o namoro acabou em 28 de fevereiro de 2009 e não em 15 de setembro de 2011 como Alisson esperava; isto indicava que houve a antecipação no tempo de um fato que ocorreria somente em dois mil e onze. Os fatos poderiam ser alterados. Então sua mãe não necessariamente iria morrer em agosto de dois mil e onze. Isto o alegrou, mas ao mesmo tempo rapidamente o amedrontou: sua mãe poderia morrer antes. Tentou não pensar nisto e adormeceu.

 (Gilmar Cabral) 












quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Suave Paz

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A paz é como um barco sem ondas
apenas pairando sobre a água sem algas.
A paz sempre terá um espaço sem águas.
Minha paz em tempos de crise inclusive
a paz não deixa de me perseguir e insistir
em vir ao meu coração num oceano de chão.
A paz suavemente penetrando o meu ser
sem ter com o que me preocupar e viver 
a paz e mais: águas calmas em mim. 

(Gilmar Cabral)

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Romance Nova Chance - capítulo 7

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...E o nosso amor, que brotou
Do tempo, não tem idade,
Pois só quem ama
Escutou o apelo da eternidade.
(Carlos Drummond de Andrade)

            Mal Alisson estacionou o carro na sua garagem, saiu rapidamente dele e abriu a porta de casa, deixando as chaves do carro sobre a mesa de centro da sala, partiu para a área de serviço, buscando o cesto de roupas sujas. Encontrou. Achou a camisa usada naquele dia lá na casa da Camily. Olhou o bolso e lá estava o papel. Fez: ufa!.... Colocou-o sobre a mesa da cozinha e foi tirar a roupa para um bom banho. Planejava limpar-se, comer alguma coisa e telefonar para Elizabeth. Depois estudaria o texto bíblico. Afinal, queria ler tanto o texto completo de Eclesiastes quanto ler o texto de Isaías contido naquela folha de papel.
            Enquanto tomava uma chuveirada, conseguiu ouvir o telefone celular tocar lá, esquecido no sofá. Não se apressou desta vez, queria curtir aquele momento de refrigério e de recordação do período maravilhoso passado com a mãe. Depois ele olharia quem havia ligado. No entanto, e se fosse Camily? Era mais fácil ser Elizabeth. Esfriou e deixou a água rolar. Ensaboou-se e depois deixou calmamente a água limpar o seu corpo, como se estivesse limpando a sua alma. Saiu do boxe de corpo e alma “lavados”. A experiência com sua mãe foi tremenda, inesquecível.
            Lentamente se enxugou passando a toalha por todas as partes do corpo, como se estivesse se renovando; de pele nova. Colocou a roupa de dormir. Não gostava de usar pijama, preferia dormir com uma camisa de meia na cor azul envelhecida e um short marrom desbotado. Às vezes, se estivesse frio, colocava um par de meias soquetes antigas.
            Pegando o celular no sofá, foi logo percebendo que a ligação era de Elizabeth, como imaginava. Sentou-se no sofá e ligou para ela. A priori, ninguém atendeu e logo a mensagem eletrônica de caixa postal ressoou no ouvido direito de Alisson. Pensou: “ela deve ter feito ou sabido de alguma coisa. Depois ela liga ou eu ligo”. Levantou-se e foi para a cozinha. Estava faminto. Retirou uma pizza congelada do freezer e colocou-a no micro-ondas, enquanto isso, preparou um suco de laranja; Alisson gostava de refrigerante somente com bolinhos de chuva. Gostava de bebidas alcóolicas, mesmo não abusando nunca.
            Voltou a se lembrar do bilhete ao olhá-lo sobre a mesa da cozinha. Pegou-o e as lembranças de tudo aquilo que já havia vivido para procurar Camily retornaram aos seus pensamentos. Colocou novamente o bilhete sobre a mesa e tirou a pizza do micro-ondas. Pôs uma fatia considerável no prato branco com detalhes azuis, pegou os talheres e despejou suco de laranja num copo transparente e meio azulado, e caminhou novamente para a sala com a refeição. Tinha um costume de sentar-se no sofá e por uma almofada no colo para apoiar o prato e assim poder cortar os alimentos. O copo de suco foi apoiado na mesa de centro. Alimentou-se. Tanto da pizza e do suco quanto dos pensamentos sobre sua mãe, Camily, Alexia, o tempo...
Falando no tempo, veio à memória o desejo de conhecer aquele Padre que sua mãe abordara na conversa maravilhosa que tiveram. Queria ter a oportunidade de contar o que estava acontecendo para alguém como aquele padre; alguém que pudesse ajudá-lo a entender os fatos surpreendentes que perpassavam sua vida naqueles últimos dias. Decidiu que iria vê-lo. Só que antes leria os textos bíblicos que tomara conhecimento na casa de Camily e na casa de seus pais.
            Nem percebeu que não havia ligado a televisão. Estava mergulhado nos pensamentos. Mas foi despertado pelo som repentino de seu celular. Pegou rapidamente o telefone ainda assustado, apesar de ser tamanha a sua concentração mental e estomacal, pois não deixou de colocar uma garfada sequer em sua boca, mesmo envolto aos pensamentos reflexivos. Era Elizabeth.
            _Olá! Elizabeth! Liguei para você ainda há pouco.
            _É...eu ouvi. Mas estava no banho e o celular já estava terminando a bateria.
            _Diga, o que é que você manda?
            _Eu e o seu Clayton, o investigador, estivemos juntos hoje.
            _Ah é... E o que vocês fizeram hoje? Há novidades?
            _Eu consegui ler grande parte do diário de Camily e não vi nada de relevante pelo menos para o caso. Daí, recebi o telefonema da Empresa avisando-me que o investigador estava lá para interrogar os funcionários.
            _O quê? Mas isto tem alguma utilidade?
            _Bem... ele disse que era rotina policial e que deveria cumprir isto. Porém o mais interessante aconteceu quando ele propôs que nós refizéssemos o trajeto possível de Camily naquele dia.
            _É realmente foi uma boa ideia, Elizabeth. Bem mais relevante do que ficar fazendo perguntas aos funcionários. Mas me conte o resto, e daí...
            _Daí que para minha surpresa ele parou num sinal, que quase sempre está fechado mesmo. Desceu do carro e foi até um bar em frente ao sinal. Conversou algum tempo e voltou bastante agitado, dizendo que estava com uma grande informação: o dono do bar havia visto o carro de Camily ser abordado por dois homens que entraram nele e, logo depois, o carro saiu a toda. Ah, tem mais, o dono do boteco falou que saiu do bar e falou com uma patrulhinha que ficava ali por perto e ele tinha praticamente a certeza de que o carro foi perseguido.
            _Então...
            _Então, quando o cara do botequim disse de qual batalhão eram os policiais, partimos para lá. Não encontramos os dois policiais que fizeram a perseguição ao carro de Camily, eles estavam de serviço, mas tivemos acesso às ocorrências policiais daquele dia do sumiço dela e lemos que a patrulhinha perseguiu o carro até a entrada de uma favela no Carpão, quando o carro dos policiais foi recebido com uma saraivada de tiros que partiam da parte alta do morro. Os policiais não tiveram alternativa a não ser recuarem e pedirem reforço. Este chegou e eles entraram na favela, porém não encontraram nada, nem carro e nem Camily. Voltaram sem nenhuma informação sobre o carro e nem sobre ela. No relatório, consta que os policiais desconfiam que os sequestradores devam ter saído pelo outro lado da favela.
            _Que que é isso! Parece coisa de Hollywood! Mas... o que que o seu Clayton acha?
            _Ele pensa que realmente foi um sequestro e, provavelmente, um sequestro relâmpago que não deu certo por causa da perseguição policial. Daí os marginais terem se refugiado no morro, devem ter contatos ali ou serem de lá. Seu Clayton imagina que foi um sequestro relâmpago porque eles até agora não pediram resgate, o que indica que os marginais não estavam preparados para um sequestro nos moldes tradicionais e sim para algo mais ligeiro. Isto também aumenta a possibilidade dela estar morta já que não houve retorno a não ser uma ligação em seu celular. Os malfeitores podem ter descartado a vítima quando a coisa frustrou.
            _Esperemos que seu Clayton, nessa parte, esteja equivocado. Penso, ou melhor, sinto que ela pode estar viva, Elizabeth.
            _Também tenho esperanças. Pelo menos a polícia já sabe o que aconteceu quanto ao sumiço. A grande questão agora é saber o que aconteceu após a perseguição policial, isto é, onde ela está e em que condições ela está neste exato momento.
            _Exatamente.
            _Alisson, eu preciso contar uma coisa que li no diário de Camily. É sobre você.
            _Sobre mim?!
            _Sim. Como existe a real possibilidade dela estar morta, acho que não haverá problemas em contar-lhe o que li. São 20:30 horas e meu noivo está chegando para jantarmos juntos. Até cheguei a desmarcar o meu encontro com o Roberto, pois pensava que não teria tempo para ler o diário com ele aqui. Mas como consegui ler bastante no almoço e como o que li interessa a você, eu chamei-o novamente para jantar, e ele ficou meio confuso, mas decidiu vir. Afirmei que iria explicar tudo quando chegasse. Minha mãe já foi dormir. Ela dorme cedo. Peço que venha para cá jantar conosco.
            _Já jantei.
            _Então venha comer a sobremesa conosco: é mousse de limão. Não fique envergonhado, meu noivo vai estar aqui. Não tem problema. Moro na Tijuca, Rua Conde de Bonfim, prédio Alvorada, o número do apartamento é 901. É só pedir ao porteiro para interfonar. 
            _Como fiquei tentado pelo mousse e estou muito curioso sobre o que Camily escreveu sobre mim em um objeto tão íntimo como um diário, daqui a pouco estarei aí. Tchau!
            _Tchau! O aguardo!  
            Alisson rapidamente dirigiu-se para a cozinha, colocando o prato com os talheres e o copo na pia e foi para o quarto para começar a se arrumar. Estava cansado, mas a curiosidade era grande. Ele pensava enquanto se ajeitava: “será que ela falou mal de mim profissionalmente?” “É... porque... pessoalmente ela não teria muito para dizer, pois não me relacionava com ela...”. Terminou de se compor e pegou as chaves do carro. Preocupava-se com o que ouviu sobre o sequestro de Camily e com a possibilidade de ter que enfrentar a realidade de sua morte. Preocupou-se porque já estava sentindo algo diferente por ela. Quando ouvia seu nome ou proferia-o, percebia que seu coração batia mais forte e acelerado e vinha um sentimento de euforia quase de paixão juvenil; talvez porque esse tipo de sentimento meio platônico não fazia muito parte do cardápio amoroso de Alisson, e, além disso, a sensação de aventura, que era gostar de uma moça cujo desaparecimento estava sob a investigação policial, dava todo um tom hollywoodiano ao “caso” amoroso. 
            Pensativo, Alisson entrou no carro e, como de costume, acelerou, desta vez para o apartamento de Elizabeth. No meio do caminho, considerou a possibilidade real de Camily estar morta. Isto apertou seu coração. Já se sentia enamorado por ela. Todavia, procurou concentrar-se na curiosidade sobre o que estava escrito naquele diário. Algo tão íntimo de uma moça e o seu nome lá!? Por um momento rezou pedindo a Deus que ela não estivesse morta. De repente, se culpou dizendo para si mesmo: “quem sou eu para pedir algo a Deus? Eu nem tenho ligado para Ele nos últimos anos! Acho que a última vez que fiz um pedido foi no dia que... minha... mãe... morreu. Estranho falar isso se hoje conversei com ela. É... realmente no desespero eu pedi que Deus tivesse piedade de mim e me desse uma oportunidade, a última de falar com minha mãe, pedir o seu perdão. De alguma forma, Deus atendeu-me.”  
            Alisson havia chegado ao Prédio do apartamento de Elizabeth. Estacionou. Dirigiu-se à portaria e informou ao porteiro que a moradora do apartamento 901 o estava esperando. O porteiro interfonou e logo abriu a porta para Alisson. Ele entrou e dirigiu-se aos elevadores. A entrada do prédio por fora era muito normal: aquele famoso espigão de concreto acinzentado com detalhes em branco e azul. Por dentro era mais charmoso. O chão era de uma cerâmica lindíssima cor de pérola e as paredes emassadas em cor de palha com belos quadros e pequenas árvores de plástico aos cantos dos rodapés os enfeitando. Um sofá moderno marrom no hall dos elevadores para quem desejasse sentar-se para aguardar a hora de ser conduzido por um ascensorista até seu destino.
Posicionado por ali, no hall, o elevador não demorou nada. Alisson entrou e disse ao ascensorista o número do apartamento desejado. O elevador parou algumas vezes o que impacientava o rapaz. Logo o elevador ficou cheio. Quando chegou ao nono andar, Alisson saiu apressadamente, entretanto sem deixar de agradecer ao ascensorista. Achou, sem dificuldades, a porta do apartamento de Elizabeth. Tocou a campainha e prontamente Elizabeth abriu com um largo sorriso, dando boa noite e boas-vindas a ele. Estava simples sem a roupa sofisticada usada na Empresa: um vestido bege bem normal até os joelhos e com um cinto do próprio tecido envolvendo sua fina cintura; o figurino completava-se com uma sandália bem confortável, caseira mesmo, de pano. No entanto, ela estava mais bonita do que aparentava no trabalho. “Mas não mais que Camily”, dizia consigo mesmo Alisson ao vê-la com olhos de admirador.
            Roberto veio logo em seguida. Estava na cozinha já filando alguma coisa, talvez não querendo deixá-la sozinha por muito tempo ali na sala com outro homem. Vê-se que era ciumento, mas também com uma namorada atraente como Elizabeth não era mesmo para dar bobeira. Roberto era um pouco imaturo comparando-o com Elizabeth. Estava se formando em Arquitetura, mas não tinha nenhum projeto para sua carreira profissional, na verdade, nem mesmo sabia se queria exercer a profissão. Parece que ingressou no Curso de Arquitetura apenas para dar uma satisfação aos pais, que pagaram a Faculdade. Emocionalmente já demonstrava depender de Elizabeth assim como dependera de sua mãe para tomar decisões importantes na vida. De certa forma, embora não gostasse dessa dependência do namorado com relação à mãe, Elizabeth já se agradava do fato de Roberto estar transferindo sua dependência para ela. Isto a fazia sentir-se poderosa na relação entre os dois. Sem contar que a demonstração de imaturidade de Roberto dava um tom de ingenuidade a ele que funcionava como um atrativo a mais na relação dos dois. Elizabeth ficava excitada com tamanha dependência do “seu meninão grandão”. 
Alisson e Roberto cumprimentaram-se muito educadamente. Elizabeth convidou a visita para que se sentasse no sofá vermelho, o menor. Seu apartamento era bem aconchegante, embora não fosse muito espaçoso. A sala era realmente o lugar mais amplo. Bem decorado com quadros pintados e peças decorativas nos móveis. Um belo tapete fofo na cor café com leite completava o requinte da sala. Paredes em cor branco gelo. Sem falar na enorme TV de plasma (umas 52’) que repousava sobre um reque de designe altamente moderno. Alisson passou os olhos rapidamente sobre o ambiente e aprovou tudo: ela, como a chefa, tinha bom gosto.
Elizabeth sentou-se ao lado de Roberto no sofá maior, o coral, e falou para Alisson que ela já havia contado de forma resumida, mas precisa, tudo o que estava acontecendo para o seu namorado. Este afirmava tudo com a cabeça e fazia cara de espanto. Alisson de repente teve vontade de rir das caretas de Roberto ao ouvir de sua amada os detalhes que ela já o havia falado. Porém, ele se conteve.
Alisson então disse:
_E o diário? Estou ansioso para saber o que Camily disse ao meu respeito.
_Ah! Sim, claro. Tome. – Elizabeth entregou a ele pegando o diário de cima da mesinha de centro.
_Eu nem vi que o diário estava aqui tão perto de mim. Ando meio desatento, sabe né! – disse Alisson.
_Claro que sei. Eu também ando meio “desbaratada” das ideias. Todos riram.
Elizabeth disse para ele ficar à vontade na leitura, enquanto eles jantavam na copa. Depois eles o chamariam para a sobremesa. Ela apenas confirmou:
_Ela fala sobre você de forma mais precisa na data de 25 de fevereiro de 2012.
Ele, espantado, falou:
_Recente!
Elzabeth e Roberto foram jantar, aproveitariam para colocar o relacionamento deles em dia. A mãe de Roberto não era muito a favor do namoro deles, porém não complicava muito; o problema era o rapaz que ainda não se libertara do “cordão umbilical” e isso irritava Elizabeth. Estiveram por algum tempo separados e quase terminaram definitivamente tudo. O que salvou o relacionamento era a paixão intensa que sentiam um pelo outro. Sentaram-se para jantar e a conversa logo começou, mas em tom amigável, até mesmo amoroso: era “meu bem para cá”, “meu coração” para lá; e Elizabeth foi com jeitinho cobrando mais firmeza do Roberto com relação maneira intrujona da mãe dele participar do relacionamento deles. Ao que o cara garantiu que iria se posicionar de forma mais decisiva e definidora quanto a isso, é lógico que sem deixar de dizer que “a mãe não fazia por mal”. Elizabeth se deu por satisfeita, embora tivesse uma vontade danada de contra argumentar, mas resolveu não estragar o jantar; até porque ele já havia afirmado que falaria com a mãe para “pegar mais leve” com eles. Jantaram em paz. Enquanto isso, Alisson, ajeitando-se no sofá, abriu o diário lentamente como que com receio de ler, mas ao mesmo tempo, cheio de curiosidade. Leu calmamente:
Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 2009.
Hoje decidi registrar aqui algo que venho tentando há algum tempo colocar no papel, mas que sempre desisto por ficar envergonhada. Hoje vai ser diferente, afinal, desde quando falar de amor é para se ter vergonha? Desde que terminamos, eu e o Flávio, e isto já faz um ano, não havia me interessado mais por nenhum rapaz. Todavia, não posso negar que de algumas semanas para cá venho pensando muito num colega de trabalho. Certamente ele nem imagina que estou me interessando por ele já que trabalhamos em setores diferentes na Empresa e não nos relacionamos muito.
Porém, o fato é que seu jeito, seus gestos, sua postura no trabalho e, não poderia ser diferente, sua beleza vêm me atraindo a cada dia que o vejo, mesmo que seja somente por alguns instantes.

“Caramba! Ela estava apaixonada por mim?!”

Sei que, fora o trabalho, nossos “mundos” são bem diferentes. Eu sou evangélica e ele, ao que me parece, não pratica nenhuma religião; talvez seja um católico nominal, isto é, mais por tradição de família do que por convicção e sem nenhuma prática religiosa.

“É de fato eu sou um católico nominal, mas tenho fé, poxa!”

Ele é gerente de Marketing e é muito criativo, simpático e bom companheiro de trabalho. Tem um nome muito bonito: Alisson. Quando aparece no meu setor, o meu coração começa a acelerar e fico com as pernas meio que bambas; até mesmo sem graça por ter receio do pessoal ou dele mesmo notar que mudei diante de sua presença.

“Nossa! Assim vou estourar com tanto elogios! Teria que mostrar isso para a diretoria me valorizar mais. Estou todo bobo: mexer dessa maneira com o coração de uma moça linda, altamente inteligente e competente, não é para qualquer um”.

Acho que estou ficando apaixonada por ele! Ainda que sem conversarmos muito ou sequer nos tocarmos de uma forma mais consistente. Talvez seja uma paixão platônica, não sei. Só sei que me faz bem sentir isto que eu estou sentindo ao escrever estas palavras, abrindo o meu coração para você, querido diário.

“Gostei da frase: ‘tocarmos de uma forma mais consistente’, legal!”

Não sei se um dia ele saberá dessa minha admiração secreta, dessa paixão romantizada. Na verdade, nem mesmo sei se este sentimento que vem crescendo nos últimos dias resistirá ao tempo e à minha falta de coragem para me declarar. Mas, por enquanto, posso afirmar que este meu querido Alisson me fez ver a vida novamente com um toque de encantamento e de beleza. Até amanhã, querido diário.

Alisson fechou o objeto que o surpreendera e o pôs sobre o peito apertando-o e dizendo para si mesmo: “que ela não esteja morta...”
Elizabeth e Roberto apareceram na sala e convidaram Alisson para comerem a sobremesa juntos. Ele agradeceu, mas disse que precisava voltar para casa. O casal não permitiu arrastando-o para a cozinha. Lá, na pequena mesa, os três saborearam o mousse de limão regado ao assunto predileto da noite: lembranças de Camily. Alisson ficava meio embasbacado ouvindo Elizabeth falar de alguns momentos inusitados da amiga e a dizer como ela era no dia a dia do trabalho. Os olhos de Alisson brilhavam e ele falava:
_Fale mais sobre ela!
Elizabeth comentava:
_Vejo que o diário mexeu com você. Acho que além das palavras apaixonadas de Camily há mais alguém querendo declarar frases românticas nesta noite; pena que não é você não é Roberto?
_Se você deseja, eu lerei um poema de amor para você, minha querida! – brincou Roberto.
_Ah, assim não tem graça: forçando a barra! Pode guardar seu poema para outra ocasião.
A noite foi se aprofundando e ficando tarde. Alisson então resolveu despedir-se. Ao ouvir: “é cedo!” Disse que tinha planos de ir à missa no domingo pela manhã, pois queria rezar por Camily e fazer uma surpresa à sua mãe: desejava assistir à missa ao seu lado e depois ir almoçar com ela, o pai e o irmão. Também revelou que iria aproveitar e marcar uma conversa com o Padre Abel sobre a questão do Tempo e outras coisas que o intrigavam. Ao que Elizabeth e Roberto acharam muito boa a iniciativa de Alisson e afirmaram que também iriam rezar por Camily, embora sem irem à Igreja.

            Ele abriu a porta de casa. Era tarde da noite. Estava cansado, mas ao mesmo tempo, extasiado por saber que uma bela mulher o amava. Tirou a roupa. Tomou um demorado banho, trocou-se e foi se deitar. Pediu a Deus duas coisas antes de conciliar o sono: que Camily estivesse viva e que ele sonhasse com ela. Também agradeceu por ter vivido um sábado tão especial. Já deitado, lembrou-se do texto bíblico recolhido na casa de Camily. Levantou-se e, dirigindo-se até a cozinha, encontrou a referência bíblica escrita no papel sobre a mesa: Isaías 38:1-8. Correu com o papel na mão até sua estante na sala e procurou por sua Bíblia antiga, que usava nas liturgias da Igreja. Achou-a guardada numa caixa de objetos da infância e da adolescência depositada numa parte da estante que há muito ele não abria, pois lá eram guardadas coisas antigas. A Bíblia estava com as folhas bem amareladas e com a capa já se decompondo. Abriu-a e veio à sua mente muitas recordações da infância e da adolescência. Lembrou-se do catecismo e da primeira comunhão. Relembrou como sua mãe ficou orgulhosa por ver seu filho na Igrejá, servindo a Deus.
            Voltou para a cama e, sentando-se, recostou e começou a ler as Palavras Sagradas. Abriu no livro de Salmos. Todavia, sua curiosidade era ler o texto lido por Camily antes de seu sequestro. Teve alguma dificuldade para encontrar o texto já que fazia muito tempo que ele não lia as Escrituras. Finalmente achou a referência e leu o texto atentamente:

Por aquele tempo, adoeceu Ezequias de uma enfermidade mortal. O profeta Isaías, filho de Amós, veio procurá-lo e lhe disse: “Assim diz Iahweh: Dá as tuas últimas ordens à tua casa porque hás de morrer; não te recuperarás.” Ezequias voltou-se para a parede e orou a Iahweh e disse: “ah, Iahweh, lembra-te de que tenho andado na tua presença com fidelidade e de coração inteiro, e fiz o que é agradável aos teus olhos.” E Ezequias verteu abundantes lágrimas. Então veio a palavra de Iahweh a Isaías: vai dizer a Ezequias: Assim diz Iahweh, Deus de teu pai Davi: Ouvi a tua oração e vi as tuas lágrimas. Acrescentarei quinze anos à tua vida. Eu te livrarei, tu e esta cidade, das mãos do rei da Assíria e protegerei esta cidade. Eis o sinal da parte de Iahweh de que ele cumprirá a palavra que pronunciou. Eu farei recuar dez graus a sombra que o sol avançou sobre os degraus da câmara alta de Acaz – dez graus para trás.” O sol recuou dez graus sobre os degraus que tinha avançado.             
           
“Impressionante!” Pensou Alisson. Entendeu mas não entendeu. Percebeu que Ezequias estava para morrer e Deus ouviu a sua oração mudando a sentença. Também compreendeu que o sinal foi o recuo de dez graus na “câmara de Acaz”, o que julgou ser uma espécie de relógio.  Achou estranho, mas lembrou-se que fora desde pequeno na Igreja instruído a acreditar na Bíblia como verdadeira e infalível Palavra de Deus. Acreditou no episódio, porém se questionou: “o que esse texto teria a ver com o sumiço de Camily e com a sua possível repentina volta no tempo? Qual a ligação?” Alisson pressentia que suas respostas passavam por ali. Inquieto, fechou a Bíblia e tentou adormecer.   

















(Quem já não pensou em viver um romance estilo hollywoodiano? As fantasias românticas são as mais variadas. Há aqueles que sonham com um amor estilo Romeu e Julieta. Há os que gostam de viver um caso amoroso menos romântico e mais agitado como nos filmes de ação, principalmente, quando a trama envolve um caso policial. O tom de aventura desse segundo tipo é o que garante o interesse e o fascínio dessa relação.)




















(A rotina quase monótona de levar pessoas ora para cima e ora para baixo de um ascensorista muitas vezes deve ser quebrada pelo que este profissional observa diariamente ao exercer o seu ofício. Conversas, fofocas, discussões, confissões, palavrões, cantadas, choros, risos, piadas, lamentos, reclamações, elogios, trechos de canções, maus cheiros, bons odores, etc. É um “mundo” de sensações e de experiências que devem ser estimulantes. Se o ascensorista desejar e tiver tino para a coisa, pode até ser um contador de histórias, um contista ou até mesmo um romancista. Há muita matéria prima nas cenas de um elevador. Aliás, o elevador é uma metáfora da vida. Subimos e descemos na vida ou com muita rapidez ou demoramos muito, principalmente, quando estamos subindo. A subida é demorada com algumas exceções. A descida pode ser muito rápida, dependendo da situação. Sem contar que, às vezes, paramos, emperramos e aí geralmente vem o desespero, o que não adianta e somente atrapalha. Quando acontecer isso, o melhor é se acalmar e buscar a solução para o problema. O elevador pode ensinar muita coisa.)

(Gilmar Cabral)